Era para ser um texto gigantesco. Tive a inspiração na
Saraiva do Plaza Shopping, porém virou uma crônica tecnicamente curtinha. A
ideia de escrever sobre alguém que observava livros e alguém que cheirava
páginas foi imperdível. Até aqui a inspiração me guiou.
Boa leitura!
Para que começar
com o tradicional “ Era uma vez”, visto como pobre pelos críticos conservadores
e que se julgam tão perfeitos? Realmente começar com “Era uma vez” pode parecer
clichê e inutilizável. O “Era uma vez” remete ao passado de um fato, e de fato,
o passado as vezes tem de ser deixado de lado, para que haja presente e talvez
futuro.
Quando o passado
não é esquecido, o presente torna-se cinza, sem cores vivas, flores e amores. É
preciso, mesmo que doa, virar a página e retirar o marcador, pois se não for
assim, o passado vira presente e o futuro fica ausente.
A livraria é,
sem dúvida, o maior encontro entre o passado, o presente e o futuro. Sim, o
passado, porque ali, páginas retratam séculos, que inspiram novos escritos para
o presente e novos leitores que constroem o futuro várias vezes, pois a leitura
nos torna imortais.
Foi pensando
nisso que atravessava os corredores a passos lentos e olhares atentos nas
estantes recheadas de livros. Como viver fora desta atmosfera ilustre? Como
escutar sossegadamente palavras amargas vindo de alguém, que em são estado de
espírito declara ver a leitura como algo sem graça ou vazio?
Ela estava
linda: olhos quase blindados, cabelos escorrendo sobre os livros, abaixada como
se tivesse deixado cair um pedaço de seu coração.
Desejo e
ansiedade para encontrar a página perfeita. Torcendo para uma brisa soprar em
seus ouvidos com um nome. Cheirava as páginas, buscando a sinestesia perfeita.
A cada livro fazia e repetia o movimento sem cessar a o olfato ligado à alma.
Andou mais um
pouco e adormeceu suas mãos na poesia nacional.
“Essa mulher é incrível! ”, pensei, sem rumo.
Durou pouco
tempo, pois seu olhar encontrou um ser imortal: Dostoievski
invadiu-lhe. Muitos “Dostoievskis”
para escolher.
Livrarias são um
bem para o mundo, porém podem ser cruéis para o bolso. Ela não poderia levar
todos, e era isso que esperava.
Até que agarrou somente um com toda a força de suas
articulações: Crime e castigo.
Tinha um na mochila. Sorte?
Passei perto.
- Ótima escolha! , disse.
- Como?
- Sim, ótima escolha de livro.
- Ah!
Ela deu uma
breve risadinha, daquelas treinadas para não ser grosseira. Eu confesso que
merecia toda a grosseria possível, porque fui um grande intruso. Mas ela tinha
charme, e era delicada.
- Levaria todos, sem dúvidas.
Viu? Não disse que o bolso teme pela magia das livrarias?
Foi tão amável,
que na hora, um poema se formou na minha cabeça. Se não me esforçasse muito,
vomitaria tudo em seus ouvidos Fato!
Ela enfim
olhou-me. De cima até os pés.
Contive-me...
suspirei para dentro. Tirei o livro da mochila.
- Olha, mais um amante de Dostoievski!
- Não.
- Não?
- Na verdade, ele escreveu para mim!
- Convencimento ou uma alma carente?
Eu ri, pois ela
sabia se esquivar das palavras
- Um livro na mochila pela metade. Por que está aqui? É de
costume seu observar e falar com meninas desacompanhadas?
Fiquei em
silêncio e só voltei a respirar quando ela, dando uma risada diferente da
primeira, afirmou estar brincando.
Procurei sair
logo daquela trama. Olhei novamente para as estantes.
- Ei, não precisa mudar o foco do olhar. Eu ainda estou
aqui.
- Ainda não tinha visto aquela estante do canto. Só isso.
- Tudo bem, eu entendo. Vou olhar com você. Posso?
- Livrarias... me encantam. Tudo nelas.
- Sim, concordo.
Nossa
concordância era notável, pois estávamos em uma livraria babando por livros.
- Bem, eu vou levar este. Minha noite será com ele, e
deixarei que me desnude e me embriague.
- Nossa... você é intensa. Parece uma noite boa.
- E será. Foi um prazer te conhecer, mesmo não conhecendo.
- Digo o mesmo.
- Até logo, rapaz!
- Até, moça.
- Ah, antes que esqueça: não deixe de falar comigo na
próxima vez que me encontrar, pois adoro provar que um raio cai duas vezes no
mesmo lugar.
- Tudo bem. Digo o mesmo a você.
“Como pode você
não ter perguntado o misero nome? Como pode... como pode... como pode? “, fui
pensando isso até colocar os pés em casa.
Ainda voltei
inúmeras vezes naquela bendita livraria, mas... enfim... o destino fez sua
obrigação de fazê-la sumir.
Sentença final:
sou culpado por ter tido coragem de ser um fofoqueiro e absorver os possíveis
pensamentos dela, mas não tive um milímetro de coragem e honra para, tratando
com o mesmo respeito, perguntar o nome e convidá-la para tomar um café ou algo
que ocupasse minha boca quando o nervosismo me fizesse falar algo idiota.
E já que o autor
foi citado, nada mais justo que uma de suas frases ilustres. Essa cabe bem com
o fato.
“É muito fácil viver fazendo-se de tonto. Se
o tivesse sabido antes, ter-me-ia declarado idiota desde a minha juventude, e
poderia ser que, por esta altura, até fosse mais inteligente. Porém, quis ter
engenho demasiado depressa, e eis-me aqui agora, feito um imbecil”.
(Dostoievski, Fiodor)
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