Puro e sem gelo
Talvez, essa seja a última dose que me libertará. O último
amargo quente, angustiado e sem controle que descerá direto para as entranhas
quase sem vida chamada de alma.
Um traste pileque. Um triste soluçar e rolar de lágrimas
furtivamente guardadas para um dia tentar entender.
Talvez, essa noite dure mais do que a dose. Talvez, ela
nunca termine. Talvez, ela se torne o mais profundo que um dia pensei em
chegar.
Medo! Recebo como cortesia em uma bandeja polida e com os
dedos do garçom sem face prontos para me açoitarem, virados para mim. Na
entrada deixei minha pele para me sentir a vontade e não me aperrear com o
possível calor promovido pelas falas intoxicantes dos copos vazios.
Um desejo quase irracional arrepia minha espinha e torce com
agressividade meus pulsos. A correntes que trago sem querer estão espalhadas no
caminho, e minha sombra estabanada tropeça nelas, causando-me vergonha.
- MALDITA! Por que você é assim?
A dose vai rasgar minha garganta, tenho certeza. Minhas
pernas vão sumir, meus braços vão se cruzar e meus olhos vão saltar e grudar no
andar sutilmente corrosivo da mulher que tentou me seduzir. Fui seduzido, porém
pelo brilho arredondado e com marca de batom do copo pequeno trazido a mim.
Portanto, que seja essa a última dose a matar meu córtex. A
correr em mim como um cavalo desvairado. Um garanhão que deu um coice em seu
dono e comeu suas rédeas, tornando-se livre.
Lá estava ele. O copo cheio quase derramando o líquido
castigador e sem pena. Ele queria entrar em mim e terminar de me alucinar.
Minha última tortura; minha última decepção.
Morte ao que se foi, sem dó ou apreço. Prendo em mim a última dose, pura e sem gelo!
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